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No meio de várias conversas sobre BDSM, surgiu uma questão, aparentemente ausente (ou quase!), do ambiente português: a questão do associativismo e do activismo, seja este formal ou informal, do tipo grass-roots. Aliás, vai ser precisamente deste último tipo que boa parte deste post vai beber, em termos mentais.

Aviso à navegação: isto é um post-flame-rant. Isto é muita frustração acumulada, junta, por ver argumentos e justificações que já foram invalidadas há décadas serem apresentadas como se fossem a ideia mais brilhante do universo e arredores. Isto é um protesto. Isto é um protesto contra a falta de espírito crítico, isto é um protesto contra a falta de proactividade, isto é um protesto contra a iliteracia, isto é um protesto contra o esquecimento histórico, cultural, contextual.

 

Premissas a refutar:

  1. O BDSM não precisa de exposição política ou cívica porque é estritamente privado.
  2. Ser um activista pelo BDSM é estar a pedir que os outros nos legitimem.
  3. O BDSM é fundamentalmente separado de todas as outras formas de experiência sexual, e nada tem a aprender com elas.

 

Refutação:

1 –

A) Se há uma coisa que toda a gente pode aprender com o feminismo, é isto: «The personal is political». O que é que isto quer dizer? Que a separação entre público e privado é uma separação fundamentalmente artificial, já que todos os temas privados podem gerar uma discussão pública e são, por conseguinte, tratados e tratáveis em termos públicos.

Para quem nunca leu Habermas nem Kant (e portanto não tem realmente a noção do que é algo público ou privado), fica a versão altamente resumida: não é “público” tudo o que tem que ver com a política, e não é público tudo aquilo que se processa em público. É público tudo aquilo que entra na esfera pública, ou seja, tudo aquilo que é passível de (e se transforma de facto em) discurso a ter-se publicamente. Kant falava do iluminismo, Habermas falava da racionalidade argumentativa – enfim, ambos correlacionavam a ideia do debate sem constrangimentos nenhuns como o traço que define a essência humana fundamental. Não direi que concordo com eles nesta última questão, mas direi certamente que uma experiência humana sem debate e sem reflexão é uma experiência que acaba por ser, na maior parte dos casos, mais pobre – o nosso mundo é linguístico e linguisticamente nos entendemos e o entendemos.

Face a esta curtíssima explicação que a nenhum dos dois autores faz justiça, podemos entender que assuntos privados (ou seja, que lidam com a vida íntima, pessoal, subjectiva dos cidadãos) vão frequentemente parar à esfera pública de discussão e de representação: o aborto, o casamento, o divórcio, as heranças, a medicina e medicamentos aprovados, etc…

É fundamentalmente falso que o BDSM seja uma coisa estritamente privada. Falso no sentido em que toda a gente aqui já viu, em revistas, filmes, piadas, banda desenhada, músicas e o diabo-a-sete, referências (por muito correctas ou não que sejam, por muito directas ou não que sejam) a BDSM – ou seja, o BDSM já está na esfera pública. As pessoas sabem o que é (mas mal, muitas vezes), as pessoas já ouviram falar (mas mal, muitas vezes) e as pessoas já tomaram contacto com ele (mas mal, muitas vezes).

 

B) Nós, kinky ou não, vivemos em sociedade. Isso quer dizer que somos levados a interagir com outras pessoas para conseguirmos sobreviver em condições que consideramos ‘dignas’. Imaginem que uma pessoa kinky vai a um psicólogo. Imaginem que uma pessoa kinky vai a um médico. A um ortopedista. A um sei-lá-o-quê. Agora imaginem que, por alguma razão, esse psicólogo ou médico precisava de saber alguma coisa sobre a nossa vida kinky (ou, no caso do psicólogo, que sentíamos necessidade de falar da nossa relação – não porque ela fosse doentia, mas apenas para conversar e desabafar, que é uma boa parte do que se faz de facto num psicólogo de qualidade). Boa parte de nós ia sentir-se ligeiramente desconfortável. Uma parte ainda maior de nós iria ter um receio legítimo (muito legítimo!) de que houvesse, da parte do médico ou psicólogo, incompreensão, por muito boas que fossem as intenções. Porquê? Pelo expresso acima. Porque existe de facto uma representação sobre o que é o BDSM, mas ela é incorrecta, enviesada, e raramente ouve os actores sociais realmente envolvidos.

Agora imaginem que há uma cena qualquer, a meio de uma sessão ou outro tipo de vivência BDSM, que acaba a meter polícia, e que o polícia, com a sua tentativa de zelo, faz perguntas atrás de perguntas, e vocês são obrigados a explicar tudinho por tudinho. Porquê? Pelo expresso acima. Porque existe de facto uma representação sobre o que é o BDSM, mas ela é incorrecta, enviesada, e raramente ouve os actores sociais realmente envolvidos.

A ausência dessa representação mais exacta prejudica-nos, pessoalmente, publicamente, politicamente.

 

2 –

A) Mais um disparate. Confundir reconhecimento com legitimação é frequente, mas não deixa de ser um erro. Nós já temos legitimidade. Caramba, temos a legitimidade de estar aqui, de existirmos, de falarmos, de pensarmos. Mas o exposto no ponto 1 decorre, precisamente, de uma ausência de reconhecimento – ou seja, a nossa existência é eminentemente transparente, invisível, a não ser no que toca às representações públicas já existentes, que nos ignoram/agridem querendo ou não fazê-lo. Lutarmos pela capacidade de reconhecimento é lutarmos pela existência de médicos, advogados, psicólogos, professoras da primária, secundária e ensino superior que não só não julgam à partida alguém por saberem que essa pessoa é BDSM mas que, mais do que isso, estão dispostas a ouvir essa pessoa, a auxiliar essa pessoa, a reconhecer a legitimidade que essa pessoa já tem.

 

B) Ser activista pelo BDSM é, entre outras coisas, espalhar a palavra, espalhar a informação. Espalhar a informação por entre as pessoas que estão ‘dentro’, mas especialmente (PRINCIPALMENTE!) às pessoas que estão ‘fora’. Para quê pregar a missa ao padre? O mais importante não é converter ninguém, mas sim disseminar informação. Ser activista pelo BDSM é permitir a mais pessoas chegar aqui mais depressa, com menos esforço, é permitir um renovar constante do capital humano, é permitir que mesmo quem não se queira identificar com BDSM, ou como kinky, possa pegar nas nossas experiências, nas nossas vivências, no nosso conhecimento, e adoptá-lo, alterá-lo, transformá-lo para si, utilizá-lo como lhe apetecer, numa progressão contínua para uma génese imparável e incomparável de pluralidades sexuais, de novas e renovadas identidades emocionais, afectivas, sexuais, relacionais – enfim, de invenção e inovação.

 

3 –

Muito pelo contrário. Todas as experiências afectivas, sexuais, relacionais são, em última análise, isso mesmo – afectivas, sexuais, relacionais (acrescentem o que quiserem: transcendentais, espirituais, etc etc etc, tanto faz).

O activismo BDSM precisou, precisa e precisará de olhar para o activismo feminista e para o activismo LGBT para perceber duas coisas fundamentais: a normalização social cria silêncio, e o silêncio cria opressão. É pelo tomar da voz própria, da primeira pessoa, que o silêncio se quebra, que a opressão se quebra.

Olhar à nossa volta é ver como a sociedade nos empurra, a cada passo, pelo silêncio que instaura em torno de vários tópicos, para relacionamentos heterossexuais, monogâmicos, de longo-prazo, não-kinky. A Gayle Rubin (eminente lésbica, feminista, BDSM’er e, já agora, académica e investigadora) mostrou, no seu brilhante texto “Thinking sex”, como há uma série de duplos standards que guiam a nossa vida: “bom sexo”, “mau sexo”; “virgem”, “puta”; “garanhão”, “homem para casar”; “normal”, “patológico”.

O BDSM está enfiado no meio de tudo isto. O BDSM está colocado no lado “errado” da linha, do lado da ‘taradice’. E nós, que aqui estamos, somos acima de tudo “os tarados”, como se isso nos definisse totalmente, como se isso fosse capaz de abarcar e totalizar a experiência que é o BDSM. É isso que queremos ser? Os tarados? É a isso que queremos ser reduzidos?

E tal como fazer o coming-out LGBT tem consequências nefastas, reais, sobre quem o faz, também fazer um coming-out BDSM pode ter (e tem) consequências nefastas, reais, sobre quem o faz. Essas consequências são mantidas no lugar por quem aceita ser remetido ao silêncio do “privado” que não o é.

 

Conclusão

A apologia do não-activismo – ou seja, aqueles que dizem que, para evitar tudo isto, basta apenas escondermo-nos ainda mais, ainda melhor – é a apologia da naturalização do medo. É a apologia de uma estrutura normal, e normalizada, que nos priva de falar, que nos quer fazer acreditar que mais vale as sombras, o silêncio, a ausência de voz e de representação. Mau-grado as pessoas que por isso serão magoadas, as pessoas que por isso se mantêm ainda incompreendidas na forma como se relacionam com os seus desejos, as pessoas que não podem ir à Internet quando lhes apetece, as pessoas que se detestam a si próprias porque acreditam que os seus próprios desejos não são “naturais”.

Não discutir – e não derrubar! – a ideia de desejos naturais ou não-naturais é manter na ignorância, pela inactividade, uma sociedade, a nossa sociedade. É não cumprirmos o nosso dever cívico – que não é apenas votar! – e é agir, politicamente, no reforço das estruturas que promovem esse silêncio. É querer, voluntariamente, inserir restrições à nossa comunicação. As mesmas que o Kant achava inaceitáveis, que Habermas achava inaceitáveis.

Temos o direito a falar sobre tudo. Sobre qualquer tema. Qualquer coisa abaixo disto é censura. Eu recuso a censura, especialmente a auto-imposta. O medo que sentimos em falarmos de BDSM, em sermos “descobertos”, em vermos BDSM como tema proibido é fruto, é resultado directo, de um sistema de opressão que funciona de forma, que nos normaliza.

 

Ser activista é agir. É falar. É fazer. É assegurar a pluralidade, fundamento de uma democracia – democracia plural dos afectos, das sexualidades, das não-discriminações.