Introdução
O filme “The Matrix” é composto por toda uma panóplia de referências culturais, religiosas, filosóficas e políticas. Várias ideias se entrelaçam no filme, e muitas vezes a leitura que pode ser feita depende principalmente de quem a faz, e não do que está contido na própria obra. Ainda assim, tendo em conta a pluralidade de discursos que o compõem, “The Matrix” consegue formar um todo coeso, que dá azo a muita especulação e a pontos de vista completamente opostos.
Normalmente, o âmbito discursivo que se aplica na leitura de “The Matrix” é o da relação dominação/libertação, em que os humanos tentam desesperadamente libertar-se das aparências em que foram mergulhados pelas máquinas. Há uma luta, uma guerra, em que tudo o que é importante é a libertação deste jugo, desta ilusão. As alusões a um “mundo de sonho”[1], a um sítio que “não é real” e a habilidades que apenas são possíveis porque “não existe colher” são numerosas ao longo de toda a trilogia, e tudo o que o espectador vê, prima facie, o leva a não duvidar jamais destas mesmas afirmações, especialmente porque elas emanam dos principais protagonistas, muito mais agradáveis e com os quais a audiência se consegue identificar. Acrescente-se a isto que cada um dos filmes tem algo mais a acrescentar ao panorama geral, ou seja, cada um dos filmes tem uma discursividade que aponta para um sub-tema dentro da questão da libertação de que fala a trilogia. Uma análise filme a filme não seria proveitosa, e seria uma forma de reduzir e simplificar as ligações que são feitas, e as explicações que, por vezes, só funcionam retroactivamente. Mais do que isso, para se poder entender em pleno algumas das questões abordadas neste ensaio, será necessário recorrer a outras referências dentro do universo Matrix (como, por exemplo, as várias curtas-metragens que compõem “The Animatrix” e que oferecem um insight muito maior sobre as bases de toda a história) e também de obras que serviram de base à trilogia, como é o caso de “Ghost in the Shell”, um outro filme que aborda a questão da ética aplicada à realidade virtual (mais especificamente, à inteligência artificial ao nível a que é apresentada na trilogia) e também a questão da definição de humano, das suas bases e da possibilidade de cairmos no erro do especismo de cada vez que falamos em racionalidade dentro de um contexto de ficção científica. O que se pretende aqui é a desconstrução da leitura simplificadora de uma relação de dominação, passando para uma revalorização de todas as potencialidades que a Matriz realmente tem para oferecer, da forma como é apresentada na trilogia. Ademais, será possível evidenciar que grande parte da forma como a questão moral do filme está apresentada não se coaduna justamente com aquela que deveria ser a posição das personagens, caso estivessem na posse da verdade.
Uma amálgama de referências culturais
Eis um dos aspectos mais intrigantes da trilogia Matrix, e que lança uma observação curiosa sobre a nossa própria realidade: as referências – tanto religiosas, como filosóficas – são válidas para um sem fim de culturas que, à partida, são tomadas como completamente incompatíveis. Não é esta uma prova que, afinal, a forma de pensar e de construir teologias ou metafísicas se aproxima bastante, independentemente da leitura?
Para além da linguagem cinemática usada (como a oposição entre as cores branca e verde, presente ao longo de toda a trilogia e não desprovida de sentido), é possível fazer uma ponte entre vários pensadores da filosofia – Sócrates, Platão, Kant – ou entra correntes religiosas nem sempre relacionadas – gnosticismo, cristianismo e budismo. Isto para não falar das referências numéricas, que podem mesmo ser relacionadas com algumas teorias pitagóricas e que são de grande importância. Os nomes são outro dos factores que aqui se apresentam como tendo um sentido de interpretação mais profundo; até mesmo pormenores como o nome da nave onde as personagens principais viajavam no mundo real (Nabucodonosor) ou a inscrição por debaixo desse mesmo nome (Mark III, Nº 11 – uma referência a um texto bíblico). Uma rápida passagem por alguns destes significados permitem desconstruir uma parte do discurso religioso de Matrix.
Convém, em primeiro lugar, mencionar os vários significados da própria palavra “matriz”, nos vários contextos em que pode ser aplicada no filme, uma palavra que vem da raiz indo-europeia “Matr”, que “liga a matéria como origem e componente das coisas [...] a matéria para os pré-socráticos era o elemento primordial” (Irwin, 2002); além disso, “o termo “physis”, origem da palavra física, designava a matriz da realidade” (Irwin, 2002). Em primeiro lugar, a matriz é a forma dos comportamentos, o código que faz funcionar o programa que tem esse mesmo nome – nesse sentido, Matriz pode ser entendida num contexto matemático, num contexto programático e informático. Em segundo lugar, pode também pensar-se na matriz – no ventre – feminino, onde os humanos crescem e se desenvolvem. O funcionamento subjacente ao programa cumpre também esta função – Morpheus diz a Neo: “...os humanos já não nascem. Somos cultivados.” A questão é que, enquanto Morpheus apresenta isto como um dado negativo, podemos ver que uma das funções do programa que supostamente está a escravizar os humanos é a de cuidar desses mesmos humanos, tendo mesmo o cuidado de aproveitar os humanos mortos como forma de alimentar os vivos, numa espécie de habitat perto da perfeição. De facto, todos nós necessitamos de uma matriz, de um background cultural que nos transforme em seres humanos segundo o entendimento actual dessa expressão. Portanto, a substituição da Matriz (o programa) pela Realidade Real (doravante R.R., e em contraposição à Realidade Virtual – R.V.) implica a substituição de uma matriz por outra.
A personagem principal, com dois nomes, tem da mesma forma um duplo significado. Em primeiro lugar, o Agente Smith insiste em chamá-lo de Sr. Anderson. Isso dá-se porque Anderson deriva do grego “andras” (que significa “homem”), juntamente com “son”, “filho”. Anderson é, portanto, o Filho do Homem – um título que Jesus Cristo dá a si mesmo. O seu nick, Neo, é latim para “novo”, e por troca de letras forma também “one” – ele era chamado de “o Tal”[2]. Este seu papel de escolhido tem várias significações, consoante a interpretação que se faça. Uma das mais óbvias é a comparação com Jesus Cristo. Tal como ele, a sua vinda foi prevista, e foi necessário um renascer para que o escolhido cumprisse o seu papel. Uma outra é com o budismo, em que Neo é Buda, o iluminado, que atinge o seu estado final e desperta para perceber a realidade por detrás do mundo físico ilusório. Outra ligação se prende com o primeiro nome dele dentro da Matriz: Thomas. Tomás, ou antes, o texto apócrifo de Tomás, é um dos principais escritos para os Gnósticos. Neo pode também ser um símbolo para Sócrates e toda a defesa que ele fazia de procura da verdade. Aliás, os elementos que apoiam estas várias leituras sobrepostas estão um pouco por todo o lado. Por exemplo, no primeiro filme temos a cena com o menino monge e a colher, tipicamente budista; como já referido, a nave tem uma referência a um rei babilónico que aparece na Bíblia[3] e ao texto bíblico de Marcos 3:11; uma das personagens secundárias tem como nome Apoc (uma forma abreviada de Apocalipse, derivado das crenças cristãs); a principal figura feminina, Trinity, representa a Santíssima Trindade católica; e por aí em diante.
Morpheus, por outro lado, é um deus grego, Morfeu, que controlava o sono dos mortais. Ao mesmo tempo, é também a representação de João Baptista, seguindo a linha cristã, pois vem anunciar a vinda do salvador, Neo. Trinity, por seu lado, é quem primeiro o chama, e é quem preside ao seu renascimento, com o beijo de amor, mostrando que apenas esta qualidade poderia ser a fonte de salvação[4]. Cypher, a cifra, e uma das personagens mais controversas e enigmáticas do primeiro filme, tem a explicação do seu nome na função que tem – descodificar o código da Matriz – mas também no próprio facto de a sua personalidade ser críptica, insondável. Mais à frente analisar-se-á com mais cuidado toda a polémica à volta de Cypher, tendo em conta que a leitura que ele faz é exactamente a oposta à que a visão dos realizadores apresenta e com a qual o público é suposto identificar-se.
Até mesmo as localizações têm significados. Zion, o nome da última cidade humana, pode em português ser traduzida por Sião, a prometida e celestial morada para crentes cristãos e judaicos.
Alguns dos números que aparecem são também de grande importância. O número do quarto de Neo, no primeiro filme, é o 101. O número um representa o Homem, o seu poder e capacidade, a sua racionalidade. Neo é, como já visto, “the One”, o que literalmente se traduz como “o Um”. Ao mesmo tempo, Carl Jung diz que o um é um dos símbolos unificadores (não esquecer que a Matriz é muitas vezes descrita como sendo um mundo de sonhos e que Jung era psicanalista), sendo que “só aparece nos sonhos, segundo as observações de Jacques de la Rocheterie, quando o processo de individualização já está avançado. O sujeito é, então, capaz de assumir toda a energia do símbolo unificador para realizar em si a harmonia do consciente e do inconsciente, para realizar o equilíbrio dinâmico dos contrários reconciliados, a coabitação do irracional e do racional, do intelecto e do imaginário [...]. A totalidade unifica-se na sua pessoa, a sua pessoa expande-se na totalidade” (Chevalier & Gheerbrant, 1982).
Quando Neo renasce e se torna realmente “o Tal”, o quarto mostrado é o 303. O três representa a divindade, representa também a trindade e a perfeição. É claro que esta referência à trindade é uma referência a Trinity, que é quem o desperta. “Os psicanalistas vêem no número três, com Freud, um símbolo sexual. A própria divindade é concebida na maioria das religiões, pelo menos numa certa fase e sob uma certa forma, como uma tríade, na qual aparecem os papéis de Pai, de Mãe e de Filho.” (Chevalier & Gheerbrant, 1982)
Como anteriormente referido, as duas cores que dominam o filme são o verde da tecnologia da Matriz e o branco puro de Zion, e da nave nas primeiras cenas em que Neo desperta para a RR. De forma curiosa, o verde é “um valor médio, mediador entre o calor e o frio, o alto e o baixo, é uma cor tranquilizante, refrescante, humana.” (Chevalier & Gheerbrant, 1982) Tem, ao mesmo tempo, um valor de natureza, de criação e de cuidado, de nurturing. O branco “é uma cor de passagem, no mesmo sentido em que se fala de ritos de passagem; e é, justamente, a cor privilegiada destes ritos, com os quais se operam as mutações do ser, segundo o esquema clássico de qualquer iniciação: morte e renascimento.” (Chevalier & Gheerbrant, 1982) Não é isto que ocorre com Neo, quando ele passa da Matriz (que, lembremos, era quem fornecia os cuidados básicos a todos os humanos) e sai por uma metáfora do canal de parto para um mundo de um resplandecente branco que lhe fere os olhos que nunca usou antes?
De que forma servem estes elementos o propósito de auxiliar a pessoa que vê os filmes? Bem, o discurso com várias “camadas” de significação desta trilogia permite uma quase universalização da mensagem que veicula. Ao se tornar um discurso tão moldável que cabe dentro de várias interpretações completamente diferentes, torna-se mais fácil fazer passar uma mesma mensagem. Qual o elemento agregador de todos estes significados? A tecnologia. A tecnologia serve aqui como forma de mediação e de unificação de todas essas diferentes formas de ver o mundo. Portanto, este cenário distópico do futuro recicla muitas ideias de civilizações diferentes, para mostrar o seu paralelismo, e até que ponto a humanidade tem respostas semelhantes para os mesmos problemas, algo que só é possível notar quando uma obra como esta trilogia coloca tais factores lado a lado. Transformando todas as questões teológicas e filosóficas num contexto de salvação da humanidade, é possível a agregação de leituras diferentes sobre o real. Isto espelha a própria união que se vê nos filmes. Toda a humanidade (desperta) está unida para um único propósito, mesmo que existam discordâncias sobre a realidade de certas profecias. A leitura que se faz da questão da profecia – e que será depois tratada com mais cuidado – é um compromisso entre os factos próprios de um contexto de ficção científica que requer que toda a explicação seja racional e a crença irracional que está na base das esperanças de salvação, de uma salvação transcendente, apoiada numa mística insondável e inquestionável.
Uma Realidade Virtual sui generis
Merovingian e a Oráculo – destino e causalidade
Realidade e Liberdade – inversão de perspectiva
Conclusão
Os temas aqui abordados não esgotam todas as possibilidades de análise sobre a forma como a realidade é apresentada nesta trilogia. Para interpretar exaustivamente todos os aspectos extrapoláveis, várias centenas de páginas seriam necessárias; já muito se escreveu e se continuará a escrever sobre a trilogia Matrix. Uma coisa é certa, é um dos grandes produtos da nova cultura de Hollywood, capaz tanto de apelar a massas como também a um público erudito, oferecendo tanto um festim tecnológico e de efeitos especiais como de profundidade e intelectualidade.
Ao vermos as obras mencionadas na Introdução que se relacionam com esta trilogia, podemos perceber o quanto do que aconteceu foi culpa do Homem, do seu especismo e da sua tendência para se considerar superior. A analogia do Agente Smith, que nos compara a meros vírus está, infelizmente, exacta dentro do seu limitado alcance. Contrariamente ao que muitos pensaram, o terceiro filme da saga não é uma desilusão, é apenas a prossecução natural de um desenrolar de acontecimentos que, não obstante, poderiam ter seguido muitos outros caminhos. O caminho que os irmãos Wachowsky seguiram foi, porém, o mais natural. Desenha-se uma Matriz benevolente como cenário de futuro, uma união que não tinha sido possível séculos antes, graças à arrogância do Homem. Quantas as lições que não se poderiam retirar daqui. A primeira de todas é a de que o antropocentrismo ainda não desapareceu. O ser humano teme e afasta-se do que não conhece, e teme as próprias possibilidades do que ajuda a criar. A técnica desenvolve-se perante o olhar assustado da Humanidade, que afinal mostra ser a sua própria executora.
Seria fácil e simples fazer uma mera enumeração de significados, uma pura análise semiótica formalizada. Mais desafiante, e portanto mais recompensador, é encarar a forma como este corpus de arte fala com o espectador e tentar deslindar, através das entrelinhas, o discurso que se esconde por detrás de uma visão menos facciosa e hollywoodesca da realidade, pela desconstrução dos papéis de vítimas e heróis. O fim deste ensaio é provocar uma reconceptualização das posições de cada um dos intervenientes na história, para que isso possa ser posteriormente utilizado para uma relação com o real, com o desenvolvimento na era pós-moderna.
Bibliografia
CHEVALIER, Jean, & GHEERBRANT, Alan (1982) Dicionário dos Símbolos. Teorema
IRWIN, William (org.) (2002) Matrix, Bem-vindo ao deserto do real. Madras Editora
As outras referências são do site:
www.whatisthematrix.com
· The Matrix of Dreams, Colin McGin (2002)
· The brave new world of The Matrix, Hubert & Stephen Dreyfus (2002)
· Reality, what matters, and The Matrix, Iakovos Vasiliou (2002)
· Wake up! Gnosticism & Buddhism in The Matrix, Frances Flannery-Dailey & Rachel Wagner (2002)
· What’s so bad about living in The Matrix?, James Pryer (2003)
[3] Aparece no livro de Daniel, ligado à interpretação de sonhos e à passagem destes para acontecimentos do mundo real.
[4] Os cristãos têm como crença que Deus é Amor, isto é, que a perfeição de Deus implica um amor completo por todas as coisas. Sendo Trinity a Trindade, ela representa a acção benevolente do Espírito Santo sobre o seu salvador.
[6] É legítimo pensar que um utilizador de uma qualquer forma de RV apenas desfruta realmente dessa mesma RV porque a consegue contrastar com a sua vida quotidiana. Se a imersão fosse de tal grau que ele não sabia estar numa simulação, encará-la-ia como sendo a sua vida quotidiana, reagindo da mesma forma.
[7] O uso da expressão “percepção consciente” pode parecer redundante, mas serve para demarcar e reforçar a ideia de que é preciso um acto de vontade consciente para que se exerça tal tipo de controlo sobre a Matriz. Como exemplo, o Neo sempre teve, segundo Morpheus, a sensação de que algo não estava bem com a realidade, e que apenas aceitava o que via porque estava “à espera de acordar”.