Conferência/Workshop sobre estas questões a 9 de Maio de 2016, acessível aqui: Jornalismo, ativismo e democracia - Questões e práticas no cruzamento entre imprensa e minorias
Introdução
O Jornalismo encontra-se, neste preciso momento, em plena crise de identidade e legitimidade. Crise de identidade pela convergência de diferentes media que se alteram mutuamente; crise de legitimidade provocada por uma reapreciação empírica e teórica da própria forma de fazer jornalismo na sociedade contemporânea, com a percepção dos jogos de poder envolvidos e com a deriva para o infotainment.
Ainda assim, é impossível contornar o papel fundamental que o jornalismo tem na síntese sociocultural necessária para um mundo cada vez mais próximo, cada vez mais distante. Por conseguinte, urge agora tentar perceber qual o papel do Jornalismo na sociedade actual e, de forma mais premente – atendendo às velhas histórias do Jornalismo como contra-poder ou como Quarto Poder – qual o seu papel social e dos profissionais da informação. Mas, para conseguir chegar a esta conclusão – se é que isso é possível dentro do panorama actual – há que considerar vários factores relacionados com a produção do material jornalístico e também com a sua recepção e respectivos efeitos. Questões como o efeito dos mass media, o questionar dos corolários de objectividade, o estatuto ontológico do Jornalismo e muitas outras terão que passar obrigatoriamente por uma consideração do que é que o Jornalismo pode fazer pelo tecido social.
O Jornalismo e a Realidade
Em primeiro lugar, encontramo-nos perante a desmistificação de qual o papel do jornalismo. Inicialmente tomado como uma forma de transmitir a realidade observada, de a entregar tal como ela é, o Jornalismo é agora correctamente visto como uma forma de construir a realidade. “[…] Em termos sociofenomenológicos [trata-se] de um projecto de objectivação regido tanto por práticas institucionais (a tipificação, as rotinas), como por mecanismos de autolegitimação” – este é o panorama que nos dá Giorgio Grossi (cit. em Saperas, 2000). Isto quer então dizer que o Jornalismo não acarreta consigo apenas os efeitos de ser uma forma de mediação comunicacional, mas também produz sentidos e percepções que nada têm que ver, na sua génese, com o acontecimento que levou à cobertura jornalística. Como diz D. Altheide, a quem Grossi faz referência, “o processo informativo contribui para descontextualizar um acontecimento, para destacar um acontecimento do contexto em que se produziu, e se poder recontextualizá-lo nas formas informativas” (cit. em Saperas, 2000).
O Jornalismo como instituição procura a construção desta realidade através de práticas profissionais conducentes à sua própria legitimação. Esta legitimação é depois validada perante o corpo social onde essa instituição opera e implica uma forma de acordo social entre estas duas entidades (um “acordo comunicativo”, assim lhe chama Grossi), cujo resultado é uma incumbência do jornalista em realizar esta construção tendo como base um conjunto de “vínculos cognitivos que regulam os próprios modelos de intercâmbio e de interação na vida quotidiana” (Grossi, cit. em Saperas, 2000).
Ora, qualquer acordo envolve por sí só uma relação de poder. Como nos faz ver Teun van Dijk (2005), encerra-se nessa relação de poder a possibilidade – o perigo – de uma legitimação plena do detentor da capacidade de influenciar os grupos, neste caso, os meios de comunicação social. Claro que o exercício deste poder nunca poderá ser absoluto – isso seria negar a possibilidade do contraditório e da discórdia dentro do espaço social, fora do contexto jornalístico. Mais adiante será analisada a forma como esta interacção entre a instituição jornalística e a sociedade se processa.
Agora, o foco deve recair sobre as consequências teóricas do que significa saber o Jornalismo como produtor de constructos, ao invés de transmissor de factos e verdades. E a principal é, sem dúvida, a reconceptualização da noção de objectividade que isso implica.
A noção de objectividade surge desde o início aliada à criação de um espaço-audiência comum que englobe o maior número possível de leitores, “de modo a poder «credenciar» o periódico perante os anunciantes” (Mesquita, 2004) – portanto, a objectividade como recurso comercial. O conceito toma uma viragem já no século XX, nos E.U.A., precisamente como forma de reagir contra o sensacionalismo – John Merrill chama-lhe objectivity-as-ethics-concept (cit. em Mesquita, 2004).
É este conceito ético da objectividade que se tem tentado manter desde então. Mário Mesquita fala em três facetas desta acepção de objectividade: normativa, processual e estilística. Porém, como já referido, considerar o Jornalismo como obra de construção da realidade é descartar a objectividade nestes três sentidos. Ao nível normativo – entenda-se deontológico – podemos citar Marguerite Duras: “Um jornalista é alguém que observa o mundo e o seu funcionamento, que diariamente o vigia muito de perto […] e não consegue fazer este trabalho sem julgar o que vê. […] A informação objectiva é um logro total. Não há, de facto, jornalismo objectivo” (cit. em Mesquita, 2004). O processo jornalístico também obsta à entronização do conceito de objectividade: Gaye Tuchman identificou, já nos anos 70, toda uma série de práticas mecanizadas de obtenção de uma suposta “objectividade” que, na verdade, nada mais é do que uma forma de “diminuir os riscos corridos pelos profissionais” (Mesquita, 2004). Além disso, o recurso a técnicas discursivas como a própria pirâmide invertida implicam já um grau de interpretação, como Schudson afirma (cit. em Mesquita, 2004).
Por último, a questão do estilo, como vista pelos defensores acérrimos de uma suposta objectividade asséptica, é posta em causa por mais do que uma prática corrente do jornalismo. De um lado, o Novo Jornalismo afirmou-se precisamente pela busca da subjectividade: “Nunca vacilei perante qualquer artifício que pudesse, de forma razoável, atrair a atenção do leitor durante mais uns segundos” (Wolfe, 1994); por outro lado, as práticas do jornalismo de investigação acabam por destacar o papel do autor do texto jornalístico; a Declaração de Princípios da UNESCO refere uma necessidade de contextualização e explicação, que serão sempre interpretativas. Ainda assim, nada disto tem que indicar o colapso do Jornalismo – a redenção pode advir da expressão de Paul Ricœur (cit. em Mesquita, 2004): a “atitude de objectividade”. Esta passa por uma “subjectividade de investigação” (termo do mesmo autor) que, como nos explica Mesquita (2004), é uma “implicação pessoal do jornalista na reconstrução e explicação dos acontecimentos”.
O Jornalismo e a Sociedade
O aspecto seguinte a ter em conta na compreensão da dinâmica do Jornalismo encontra-se no lado da recepção da mensagem, nos seus efeitos performativos. De facto, é preciso perceber como é que o Jornalismo age sobre a sua audiência para saber qual o seu alcance social, quais as capacidades que inerentemente permitem ao jornalista agir.
De uma longa tradição de considerar os media como detentores de apenas alguns efeitos fracos de âmbito reduzido, o paradigma dominante originário dos E.U.A., passa-se para uma reavaliação da influência forte dos media e do jornalismo em particular.
A Gap Hypothesis é um dos trabalhos mais influentes nesta área. Segundo esta hipótese de trabalho, “estabelece-se […] um distanciamento de conhecimentos entre os diversos sectores socioeconómicos, fundado numa diferença de capacidades comunicativas dos indivíduos” (Saperas, 2000). A informação é assim considerada como uma ferramenta de controlo social, que gera desigualdades entre os diferentes escalões sociais, ao mesmo tempo que contribui para “reforçar certos valores e certas normas na sociedade”, segundo Tichenor, Donohue e Olien (cit. em Saperas, 2000). Eis a importância desta questão: “as desigualdades sociais na distribuição do conhecimento político e correspondentes desequilíbrios na incidência da participação política ameaçam o conceito de igualdade política” (Eksteriwicz, Roberts e Clark, cit. em Mesquita, 2004). Este distanciamento provoca portanto uma fragilização da audiência, num dispositivo cíclico que leva a um desmesurado poder dos media sobre a sociedade ou, pelo menos, sobre as camadas desta que não pertençam à elite.
“A comunicação de massas elabora os seus conteúdos em função da estrutura social na qual se realiza a actividade dos meios de comunicação de massas, de forma que os temas que suscitam um maior interesse colectivo projectam sistematicamente as posições que sobre estes temas são sustentadas pelos grupos que exercem o poder social e económico, assim como cultural.” (Saperas, 2000)
É com isto em mente que podemos entender em seguida o funcionamento da “Espiral do Silêncio”, de Noëlle-Neuman. A autora explica como a percepção que cada um tem do que considera a opinião pública, e a percepção de como a sua própria opinião pode diferir dessa mesma opinião supostamente consensual levam, através do medo do isolamento social, a que essas opiniões divergentes sejam silenciadas (Noëlle-Neumann, 1995). Isto reforça ainda mais a própria ideia de consenso que se faz sentir na dita “opinião pública”. E um dos veículos dessa ideia de opinião pública é exactamente o jornalismo, que faz passar uma visão unívoca e pré-definida do que rodeia os indivíduos, parcialmente através dos aspectos acima mencionados.
Mais ainda, os media servem também uma “função de articulação”. Ou seja, são eles que disponibilizam aos indivíduos “as palavras e as frases que podem utilizar para defender determinado ponto de vista” (Noëlle-Neumann, 1995), auxiliando a que todas as outras, com menos recursos mais facilmente disponíveis, sejam remetidas ao silêncio. Não é possível evitar aqui o paralelismo com a forma de funcionamento dos estereótipos, que são parcialmente utilizados como forma de poupar recursos cognitivos (vide Galen Bodenhausen, investigador no campo da Psicologia, que pesquisou o uso de heurísticas como forma de tomar decisões).
Por último, importa que nos debrucemos sobre os pontos que Teun Van Dijk usa para basear a importância da análise crítica do discurso (ACD). O principal é o seu entendimento de como os media exercem o seu poder: o “controlo da mente”. Van Dijk ressalva que este controlo não pode nunca ser absoluto: “não podemos prever sempre quais são os traços de um determinado texto ou fala que poderão ter efeitos nas mentes de receptores específicos” (Dijk, 2005). Ainda assim, existem quatro influentes formas pelas quais este controlo da mente é exercido, que envolvem uma aceitação acrítica quando se considera a fonte “de confiança”; uma obrigação em participar da recepção do discurso, que leva a um maior controlo institucional sobre o que e como é dito; a incapacidade de conseguir derivar crenças alternativas a partir dos materiais fornecidos pelos media; por fim, a possibilidade de que os receptores não possuam os conhecimentos e recursos cognitivos necessários para proceder ao contraditório.
Este último ponto em específico resulta dos três anteriores, mas também se liga directamente às duas ideias anteriormente apresentadas: de um lado, a Gap Hypothesis teoriza sobre as consequências da falta de conhecimentos sobre um dado assunto; do outro, a Espiral do Silêncio mostra como a falta de “palavras e frases que podem utilizar” (para usar a expressão da autora) reconduz a uma postura de passividade. O próprio van Dijk diz: “[…] a falta de poder dos leitores pode envolver o acesso limitado (passivo) ao discurso dos media” (Dijk, 2005).
Concomitantemente, importa destacar o papel muito relevante dos conceitos de ideologia e modelos mentais, que van Dijk aplica na sua obra. Os modelos mentais identificam-se com aquilo que mais retemos da leitura de um texto ou participação de algum acontecimento, uma “representação esquemática das dimensões pessoal e socialmente relevantes dos acontecimentos” (Dijk, 2005). Como já foi referido, o trabalho do Jornalismo é o trabalho de uma construção da realidade. Assim, a factualidade não é o que preside à coerência do texto jornalístico, mas sim “os modos como os factos são definidos ou interpretados pelos utilizadores da linguagem nos seus modelos mentais desses factos” (Dijk, 2005). Além disto, o uso do que ele chama scripts ou seja, formas pré-definidas e normalizadas de produção de comunicação sobre determinados assuntos (estruturas narrativas, portanto, que têm apenas de ser aplicadas aos particulares de cada acontecimento noticiado), contribui para uma homogeneização do trabalho de interpretação da audiência, que tem como plano de fundo o mesmo “quadro fundamental de interpretação”, ou seja, a mesma ideologia. O jornalismo apela então a esta ideologia como forma de facilitar uma leitura pretendida, com vista ao reforço da estrutura social existente – manutenção do status quo.
Envolvimento e Distanciamento – A Falsa Polémica
Desde muito cedo a percepção destas nuances da prática jornalística levou a uma bipolarização. Esta é especialmente evidente no campo da aplicação das normas deontológicas, e liga-se também à reconceptualização da objectividade. Formaram-se então dois enclaves supostamente antagónicos e irreconciliáveis, tanto mais por serem impossíveis de praticar de forma “pura”: de um lado o jornalismo da Razão pura, o absoluto recuo crítico que desliga o jornalista do leitor, algo comparável ao que Mário Mesquita chama de “jornalista observador” e que se pode identificar parcialmente com o jornalismo de agência; e o jornalista engajado, que engloba várias categorias, como o “militante”, “comprometido” ou o “comunitário” (Mesquita, 2004).
Norbert Elias é extremamente incisivo sobre esta questão. O distanciamento puro não é possível, não é praticável (Elias, 1998). Apesar de este autor se estar a referir ao papel do cientista social, a verdade é que as suas conclusões podem, cum grano salis, ser aplicadas ao papel do jornalista. O jornalista tem que fazer parte do tecido social sobre o qual vai escrever para conseguir compreender o contexto, para conseguir proceder a uma construção com maior coerência e manter ainda assim uma atitude de objectividade. O afastamento radical da cognição social do que é a realidade – um perigo que o excesso de distanciamento comporta, e que acaba por tornar nulo ou desadequado o texto jornalístico – desliga o jornalista do seu público. A performatividade discursiva, aqui considerada sob o ponto de vista de uma necessidade no papel do jornalista para a prossecução de uma missão social, anula-se. Além disso, com o fim da crença na objectividade pura do Jornalismo, esta visão perde qualquer sustentação teórica.
No outro extremo da escala ou, mais exactamente, do continuum (Elias, 1998), encontra-se o jornalismo cívico, nas suas diferentes acepções. Apesar das variadas premissas que apontam direcções positivas e lições a tirar para uma melhor prática jornalística, o jornalismo cívico incorre num grave erro. O engajamento sem fronteiras parte de um bom princípio (o reavivar do debate racional do espaço público) mas concretiza-se numa visão maniqueísta de Jornalismo como contra-poder, como uma ferramenta de pressão simples, orientada num único sentido, tomando forma e consistência apenas contra as instituições oficiais de poder, ignorando assim o complexo palco social em que as relações de poder discursivo se inscrevem. Sofreria também a capacidade de auto-regulação, numa linha que vai claramente contra os princípios da responsabilidade social. Além do mais, como identifica Michael Schudson (cit. em Mesquita, 2004), há a “tendência para não considerar o que acontece quando os valores comunitários colidem ou até onde os valores comunitários não-liberais têm que ser tolerados pelo público”.
Tem surgido também uma terceira via, que procura a submissão do Jornalismo a uma prática de comércio, tendo por bandeira a informação como bem de consumo. A rapidez e a superficialidade caracterizam esta terceira via, e o infotainment é o seu ex libris. Do frenesim criado pelo Big Brother, figura de contaminação do género jornalístico sem dele fazer parte, até às repercussões disso mesmo no caso de Entre-os-Rios, este jornalismo do imediatismo vê-se acicatado pelas novas tecnologias de informação, que lhe servem de apoio para um contacto que é cada vez mais da ordem do imediato, do irreflectido. Aqui a distanciação crítica esvai-se em favor da frescura da notícia. A proximidade é a pedra de toque e, ao contrário da impraticabilidade da racionalidade absoluta no jornalismo, é muito facilmente executável e podemos vê-la reproduzida nos momentos mais passíveis de exploração emotiva: o caso do momento é o da jovem Maddie, onde podemos assistir a uma clara manipulação dos media e onde quase cremos que o Grande Irmão existe mesmo, ou que entrámos na torre de controlo panóptico.
Contra o Status Quo
Apesar de parecerem esgotadas as vias para o caminho da missão social do jornalista, assim não é. Em primeiro lugar, é preciso reafirmar a participação activa do jornalista na produção jornalística. Isto é, o jornalista não é apenas um avatar de um suposto super-sujeito que dá pelo nome do órgão de comunicação social que emprega o dito jornalista. O papel deste agente social é fundamental para a forma como o jornalismo é desenvolvido. Os condicionalismos institucionais que o jornalista sofre não são suficientes para fazer esquecer que, no fim de contas, é o jornalista singular, num processo criativo, que elabora o texto jornalístico, não a instituição por si mesma. Como van Dijk faz notar, “[…] a imprensa mainstream está longe de ser um espectador passivo, muito menos uma vítima de controlo político ou corporativo e de manipulação. […] a imprensa é frequentemente a primeira a presenciar ou a descrever acontecimentos de última hora, novos desenvolvimentos ou situações locais. É sobretudo a sua definição da situação que contribui para a manufactura da opinião pública, senão das opiniões das elites políticas. […] Isto é, na medida e que a imprensa é «livre», também tem (contra)-poder potencial” (Dijk, 2005). Ainda assim, “a imprensa é parte inerente desta produção conjunta de um consenso que sustém o poder da elite” (Dijk, 2005).
A proposta que aqui é feita pretende, no campo teórico e, até certo ponto, no prático também, avançar com uma possível solução para o confronto entre dicotomias. Pela realização de um movimento sincrético que toma em conta a necessidade de distanciação que o jornalista tem que ter para cumprir correctamente o seu papel, mas que também leva em conta que a audiência não é nem deve ser um mero repositório de discurso retórico e puramente formalizado, se propõe que a missão social do jornalista seja a de combater o status quo. A leitura atenta da obra de van Dijk, da Gap Hypothesis e da Espiral do Silêncio aponta-nos uma constante: a da existência de mecanismos de repetição ideológica que conformam o discurso e, por contaminação, o espectro dentro do qual a própria sociedade em geral se permite pensar. É contra esta repetição que o jornalista terá de se insurgir. Na sua base, podemos encontrar algumas das premissas do jornalismo cívico, como uma maior preocupação com o bem-estar do espaço de debate público ou a vida política da sociedade. Porém, este é um âmbito restrito do que aqui se entende por combater o status quo. É a predominância de certos temas (de cariz primariamente político e/ou conflitual) que representa uma das maiores fraquezas do jornalismo cívico. Assim, por exemplo, a oposição a uma medida política seria trocada pela exploração crítica de várias medidas possíveis para aquele caso, com a sua correcta contextualização, dentro da medida do possível. Isto porque o status quo não é aquela medida concreta, ou sequer aquele Governo ou Ministro concretos, mas sim a ideologia que lhes subjaz, e que os ultrapassa. Outro caso: um avanço científico poderia ser explorado do ponto de vista dos antecedentes da investigação, dos benefícios, mas também seria feita uma problematização das possíveis consequências negativas, interesses envolvidos na sua divulgação (ou não), etc. Isto porque a ideologia aqui é a da Ciência messiânica, redentora e salvadora de tudo – mesmo das complicações que foi a própria a criar. O jornalismo seria então um explorar de possibilidades, de potencialidades. O campo jornalístico alarga-se até ao infinito da globalização – mas ao invés de se fazer a apologia de uma visão eurocêntrica e etnocêntrica, far-se-ia a apologia de um movimento de fusão. Respeitando o verdadeiro princípio do espaço de debate racional, o jornalismo permite que a sua audiência tome contacto com outras realidades, com outras alternativas. E usa-se aqui outras realidades como forma de representar o que está tão dramaticamente fora dos modelos de cognição social que se pode considerar como estando, no espírito do que diz van Dijk, fora da realidade mediaticamente construída.
Mário Mesquita prefere “colocar a questão da responsabilidade social do jornalista em termos de mínimo ético, que se cumpre através do respeito de um certo número de procedimentos e processos”, de forma a evitar que se sirva “um humanismo […] quente na bandeja da tecnologia” (Mesquita, 2004). Porém, esta atitude pode ser perfeitamente comparada ao movimento demasiadamente cauteloso e meramente utilitarista que Tuchman identificou como sendo o que era aplicado à noção de objectividade. Pois, se os media são capazes de efeitos poderosos, os actos por detrás desses efeitos podem também ser poderosos – são-no realmente, como nos mostra a teoria do Jornalismo como produtor de constructos sociais. Ora, essa potencialidade não é automaticamente nefasta, a não ser aquando do momento da sua aplicação.
Não se procura, com o combate ao status quo, fazer um jornalismo de guerrilha, de posições definidas, de entrincheiramento. Esses são os erros do jornalismo cívico, do jornalismo que pensa as suas guerras dentro do panorama da ideologia, reforçando-a mesmo com a aparente oposição. O jornalista que combate o status quo não é apologista desta ou daquela posição definida, não é o lutador de um ideal que estará, mais que provavelmente, encerrado ainda dentro da estrutura discursiva da ideologia a que “pertence”. Quase inadvertidamente, é a própria Gap Hypothesis que nos aponta uma das facetas práticas necessárias: “Quando a disseminação da informação sobre um tópico se mantém durante um longo período de tempo, o distanciamento dos conhecimentos entre aqueles que estão mais ou menos interessados no tema tende a diminuir” (Genova e Greenberg, cit. em Saperas, 2000). O que vai isto provocar? Uma alteração radical – a negação da supremacia da tabela de valores-notícia como orientador da agenda mediática.
Isto não quer dizer que, subitamente, os mass media teriam que se transformar em órgãos de divulgação de Ciências Sociais e Humanas ou de Ciências Naturais, ou numa súmula de análises sociológicas e antropológicas da realidade. A propósito dos acontecimentos inevitavelmente existentes, seria possível trazer a público todo um acervo informativo transcultural que é muitas vezes ignorado ou, então, secundarizado como pertencente a um Outro. Também não seria realista pensar que se poderia fazer uma transmutação do Jornalismo nesta busca da destruição do status quo num passe de mágica. Ou que subitamente todo o discurso jornalístico seria igual e uniforme. O combate ao status quo prevê isso mesmo – no momento em que uma determinada concepção ou prática passa a integrar o status quo, ela pode e deve questionar-se a si mesma, ou a quaisquer outras: a perfeição não é algo que o Humano possa atingir, apenas aspirar. Portanto, o trabalho de alteração social não está nunca concluído.
A auto-crítica é essencial para este processo. Não num ponto de vista de auto-censura, de estabelecimento de proibições, mas sim na afirmação realista de que o jornalista (ao estar tão dentro do tecido social como qualquer outra pessoa) pode ser – e é-o muitas vezes – vítima dos próprios processos de normalização ideológica, quanto mais não seja pelo uso dos scripts de que fala Teun van Dijk. Esta auto-crítica far-se-á através de uma adaptação contextual da própria Análise Crítica do Discurso. Como nos exorta o próprio (2005), “[…] devemos exercitar o estudo do discurso em geral e o estudo do discurso dos media em particular, num quadro amplo, crítico e multidisciplinar que examina as estruturas e a acção combinada das dimensões discursivas, cognitivas e sociais do texto e fala nos seus contextos societais”. A ACD é definida pelo autor como orgulhosamente enviesada. Enviesada no ponto em que a crítica que se faz identifica estruturas de poder e providencia um ponto de luta contra elas. Mas, mais uma vez, estas estruturas de poder são vistas ao nível macro-social, ao nível da ideologia, e não de um governo, de uma personalidade, de um estado, de uma instituição. Só o jornalista pode, no seu trabalho do dia-a-dia mesmo no actual contexto de submissão ideológica, readaptar a sua própria escrita para contrariar os efeitos perniciosos do uso quase inconsciente de controlo da mente que a instituição jornalística tenta fazer mediante uma aculturação por osmose que raramente é posta em causa pelo próprio jornalista. Ao apresentar uma panóplia de diferentes concepções de realidade, evita-se o efeito da Espiral do Silêncio tanto quanto possível. Ao não esquecer que dentro das estórias vivem pessoas, pessoas que fazem também parte da audiência, mantém-se intocada a subjectividade do profissional de informação, e a sua capacidade criativa, herdada do Novo Jornalismo. O trabalho que aqui resta realizar prende-se com a futura adaptação do contexto institucional a uma nova forma de ver e fazer Jornalismo.
Bibliografia
Dijk, T. v. (2005). Discurso, Notícia e Ideologia. Estudos na Análise Crítica do Discurso. Porto: Campo de Letras.
Elias, N. (1998). Involvment and Detachment. In S. Mennell, & J. Goudsblom, On Civilization, Power and Knowledge (pp. 217-248). Chicago: The University of Chicago Press.
Mesquita, M. (2004). O Quarto Equívoco - O poder dos media na sociedade contemporânea. Coimbra: MinervaCoimbra.
Noëlle-Neumann, E. (1995). La espiral del silencio - Opinion pública nuestra piel social. Barcelona: Ediciones Paidós.
Saperas, E. (2000). Os Efeitos Cognitivos da Comunicação de Massas. Lisboa: ASA Editores.
Wolfe, T. (1994). El Nuevo Periodismo (6ª ed.). (J. L. Guarner, Trad.) Barcelona: Editorial Anagrama.