Preâmbulo
Começo com um aviso à navegação: o meu uso de palavras e expressões muito típicas dentro do meio kinky/BDSM será (obscenamente?) liberal. Ao usar as palavras top e bottom, não as pretendo opostas, ou nem tão-pouco complementares à moda daquele famoso símbolo (yin-yang), mas como duas situações de troca de poder, de exercício de poder, como convencionado entre duas ou mais pessoas, numa determinada situação (quer essa situação seja de duração previamente estipulada ou não) – ideia, de resto, que Deleuze já defendeu em 1983.
Uso também kinky e BDSM de forma intermutável – e não como propriedades inerentes das pessoas, mas como algo que essas mesmas pessoas constroem e através das quais se constroem. Já dizia a Simone de Beauvoir que ninguém nasce mulher, antes se torna mulher, e não menos verdade é isto das mulheres que das pessoas kinky (embora em menor escala de impacto e alcance macro-social, claro).
Da mesma forma, kinky e baunilha (palavra abominável, em última análise) também não são termos opostos ou complementares. São ferramentas que procuram estruturar experiências, vontades e erotismos em compartimentos dualistas, a dar a ilusão de oposição. Ninguém nasce kinky como ninguém nasce mulher como ninguém nasce baunilha. Estas categorias são danosas: transformam os erotismos-como-potência (aquilo que consideramos erótico ser sempre um projecto inacabado, uma mudança constante) em erotismos-como-facticidade (olharmos o que consideramos erótico como uma lista terminada de práticas, não sujeitas a revisão).
Preâmbulo – parte 2
Este texto tem um objectivo duplo: apresentar os cruzamentos e as semelhanças entre as não-monogamias e BDSM; e apresentar as diferentes formas como estes erotismos podem ser utilizados na prática.
Mas dizer “não-monogamias” não chega, porque não vou falar delas todas (nem, como já devem ter percebido, dar-me a grandes trabalhos para distinguir ou categorizar as diferentes formas de não-monogamia). De forma que, lembrem-se, vou falar de não-monogamias em geral, mas não vou falar de uma em particular: a não-monogamia não-consensual, a traição dentro de uma relação fechada, independentemente de como as pessoas em questão resolvem definir essa traição.
Poder consensual
Poderão ter reparado que utilizei a expressão “não-consensual” para indicar aquilo de que não vou falar. E a palavra “consensual” é significativa no meio BDSM – tal como no meio das não-monogamias, embora a tendência seja para utilizar a palavra “responsável”, de forma a tornar evidente o papel de cada pessoa na construção da sua vivência não-monogâmica. Apesar de isto se aplicar mais fortemente e mais directamente à ideia de poliamor, a ideia de responsabilidade não deixa de estar afecta a outras identidades, como o swing. Além disso, isto não quer dizer que a responsabilidade não deva fazer parte de qualquer relação (sexual ou não) – apenas que, nestes contextos, esta palavra é usada como sendo central para a própria definição da relação. BDSM sem responsabilidade/consentimento não é BDSM, não-monogamia responsável sem consentimento não é não-monogamia responsável.
E é desta noção, central, de consensualidade ou responsabilidade que podemos partir para as tais ligações entre não-monogamia responsável e kinky – eu não posso ser responsável, ou não posso consentir a algo, se não tiver informação ou conhecimento do que se está a passar, de quais as diferentes alternativas. (A propósito, se a ideia de baunilha é, como referi, problemática, isto deve-se em não pouca parte a um efeito da mera existência da noção de baunilha – a normatividade das relações não-kinky, e de outros tipos, que prescreve um modelo de como as relações devem ser, mais uma ameaça aos erotismos-como-potência.) Isto, por si só, implica uma meta-análise que permita descobrir quais as características – as possibilidades, as variáveis – em jogo. Assim, da mesma forma que, para Pepper Mint, existem oito diferentes relações entre poder e BDSM, criadas em torno do movimento de transformação de práticas mainstream e não-consensuais de poder (e.g.: desigualdades sócio-económicas, desigualdades de género, desigualdades sexuais) em práticas consensuais e contextualizadas; também existem as suas equivalentes no que toca às não-monogamias. Também as não-monogamias permitem uma análise prática das relações de poder dentro dos relacionamentos íntimos interpessoais, pondo em causa várias definições normalmente tidas como certas (sendo que a definição de amor não é a menos significativa).
Portanto, a níveis diferentes (mas não muito!), tanto BDSM como relações não-monogâmicas consensuais nos obrigam a externalizar, reflectir e tornar óbvias as relações de poder e a apresentar a possibilidade de se criarem novas relações de poder (mantendo a potência dos erotismos viva e de boa saúde). Claro que estas potencialidades não são imanentes – dependem da forma como todas estas relações são vividas.
Um outro ponto de contacto é precisamente a negociação que está por detrás desse consentimento: o extirpar e tornar óbvias as relações de intimidade e poder serve para, num segundo momento, se poder tomar decisões, adaptar a novas situações: para cada pessoa ser, enfim, um agente activo do seu desenvolvimento pessoal, íntimo, identitário, erótico. Como já se referiu, não existe consentimento sem isto, pelo que o passo primeiro de qualquer relação que tenha como base o consenso é precisamente este momento de negociação, de estabelecimento de pontos de entendimento comuns sobre permissões e interdições – mesmo que tudo isto seja negociável, reciclável, mutável.
E tão mutável é o negociar de regras como o é a manutenção e o cuidar destas potencialidades eróticas – não existem práticas mais ou menos associadas a estas potencialidades, existe antes uma postura face ao que poderá vir a ser erotismo, ao que poderá vir a ser algo que enriqueça o sujeito. A circulação interminável por estas práticas pode também ser uma circulação por várias pessoas, contrastando e diversificando abordagens, personalidades, gostos, tendências, preferências, fetiches...
Intersecções e pluralidades
Não resisto a usar o esquema sobre as intersecções de não-monogamia com outras práticas do Franklin Veaux para explorar uma segunda parte deste texto. No diagrama, ele identifica não menos de quinze diferentes cruzamentos entre não-monogamia consensual e práticas kinky. Seria aborrecido estar a falar de cada um deles separadamente (especialmente porque vários são parecidos), mas queria deixar, ainda assim, as traduções das frases que ele utiliza para exemplificar cada um destes cruzamentos. A partir daí, poderemos ver mais de perto como é que estes podem ser agrupados em diferentes situações-tipo, de forma a compreender quais os casos mais comuns de cruzamento entre kinky e poly.
Considerem-se as frases:
- “Sou uma Domme profissional.”
- “O meu marido vai a uma Domme profissional. Não sei o que eles lá fazem.”
- “Está bem, querido, vão lá fazer essas coisas kinky. Não quero é saber o que fazem.”
- “O meu marido não vai a festas BDSM, mas o meu sub e eu gostamos de nos encontrar por lá.”
- “O meu marido não gosta de BDSM, por isso encontrei outro parceiro que gosta.”
- “Como sou Dominador, tenho um harém.”
- “Como teu Dominador, gosto de te partilhar com o meu amigo Jay. Ele também gosta.”
- “Gosto de ver outra pessoa a dominar o meu marido.”
- “Como teu Dominador, organizei este gang-bang para ti. Diverte-te!”
- “Como teu/tua submiss@, gosto de ter sexo com quem quer que tu digas.”
- “Fetiche de encornanço! É preciso dizer mais alguma coisa?”
- “Apenas vou a festas BDSM quando estou solteir@.”
- “Festas BDSM! É preciso dizer mais alguma coisa?”
- “Podes ter relações D/s com outras pessoas, mas só se não houver sexo nem ligação emocional.”
- “Aqui está o meu Dom, a sua outra submissa, o namorado dela, o meu namorado, e o nosso submisso. A mulher dele chega depois.”
Sem dúvida que diferentes pessoas vão olhar para estas frases de vários pontos de vista. Eu queria deixar aqui uma categorização destas experiências tendo como base os princípios que as organizam. Noto aqui que esta categorização não é nada de profundamente reflectido, apenas algo que quero utilizar, neste contexto, para esta exposição.
Categorias de organização:
Relações não-monogâmicas que decorrem do esquema de poder – 6, 7, 9, 10
Relações não-monogâmicas que são kinky / não-kinky – 2, 3, 4, 5
Relações não-monogâmicas e kinky genéricas – 14, 15
Relações não-monogâmicas situacionais – 1, 8, 11, 12, 13
Explicando – as relações da primeira categoria estão intimamente ligadas com as trocas de poder acordadas entre as pessoas; na segunda, o que mais sobressai é o diferencial entre pessoa(s) kinky e pessoas que não estão interessadas nessa identidade; as últimas duas frases constituem exemplos de constelações relacionais mais ou menos centradas na figura do “casal”; e, no caso da última categoria, é a situação (“ser uma Domme profissional” ou “estar numa festa”) a principal motivação das actividades BDSM.
Estes são apenas exemplos práticos de como não-monogamia responsável e práticas BDSM podem estar ligadas entre si, como a resposta a situações potencialmente problemáticas e fracturantes (e.g.: quando alguém que amamos não se identifica com as nossas práticas kinky, ou de todo com qualquer forma de BDSM) pode, afinal de contas, não pressupor o fim de relações presentes em busca de outras formas de erotismo; ou como as práticas não-monogâmicas podem mesmo uma forma de punição, disciplina ou recompensa.
Também para as pessoas que se identificam como switchers existe um sem-fim de diferentes situações em que o poder flui – em todos os sentidos, de formas múltiplas, desafiando categorias e definições estanques (mesmo sobre o que é a experiência do switching!) – e a frase 15 mostra bem essa mesma experiência.
É possível que nem toda a gente se reveja em todos estes exemplos – é possível até que algumas destas frases tenham conotações que deixam várias pessoas desconfortáveis. Certamente que não me identifico com todas. Porém, dentro do espírito do que foi dito acima, estas frases representam escolhas activas das pessoas que nelas estão – o empowerment não tem uma forma, senão a negação da ideia que há uma forma máxima que é preciso perseguir.
Estas quinze frases estão longe de esgotar as possibilidades presentes – tal como a minha categorização está longe de ser perfeita, estanque, ou verdadeiramente abrangente. De resto, esse não é o objectivo. Não pretendo aqui dizer como se vive não-monogamicamente em contexto BDSM – apenas apelar à realização de que é possível fazê-lo, e que existem imensos diferentes contextos onde isto apresenta uma mais-valia útil e que deve ser explorada.
Ainda assim, convém relembrar: o consentimento também necessita de se estender à não-monogamia – o facto de alguém ser visto como Dom/me não garante a essa pessoa um uso não-acordado de práticas não-monogâmicas. Da mesma forma, e como em imensas outras práticas kinky, as questões de segurança são fundamentais. Resolver fazer, por exemplo, o chamado fluid bonding (ou seja, restringir qualquer possível troca de fluídos, inclusive por transferência através de brinquedos e adereços sexuais variados) a pessoas previamente testadas por DSTs, faz parte da componente “São” em “Seguro, São, Consensual” – e, como em todas as práticas, as questões de segurança devem ser discutidas e pensadas (pessoalmente e em conjunto) reconhecendo sempre a autonomia de cada pessoa, e colocando acima do resto a sua liberdade de dispor do seu corpo, o que inclui a liberdade de não contrair doenças, de não entrar em interacções íntimas, fetichistas ou outras com alguém de forma indesejada, entre outros elementos.
É certo que algumas destas coisas podem parecer auto-evidentes: mas se o BDSM tem algum impacto, é precisamente pela oposição ao que é evidente, pelo contrariar dos estereótipos básicos: a dor que dá prazer e a escravidão que liberta podem ser duas dessas formas de libertação.
Pensamentos finais
Pretendi mostrar que as características de operação do poder em relações kinky e em relações de não-monogamia responsável são semelhantes; pretendi também mostrar que existe um sem-número de situações onde estas se cruzam de forma produtiva.
No fim de contas, porém, creio que é importante fazer lembrar que aquilo que está em causa não é, nem o BDSM como fim em si, nem a não-monogamia como fim em si. O que está em causa é a actualização constante, crítica e reflexiva da erotização do sujeito de forma a manter viva a potencialidade dos erotismos. E, para as pessoas que se identificam com a assexualidade, ou que consideram que o BDSM nada tem que ver com a prática de sexo (ou que pode ter que ver, mas também pode estar à parte) – ainda assim a importância deste pequeno artigo é pensar na maneira como se podem criar diferentes relações de intimidade, onde aquilo que menos importa, afinal, é o que se faz com a genitália que (não) se tem.
Na procura da criação destas potencialidades, o importante é mantermo-nos em movimento, em potência. O importante não é encontrarmos, dentro de nós, uma ideia de como ser top, bottom, Dom/me ou switch (ou outra coisa qualquer, ainda por nomear!), mas antes gerirmos o espaço, ao nosso redor, para alterarmos constantemente os significados de todas estas palavras, e a capacidade que cada uma delas tem de estimular de formas diferentes pessoas diferentes. E, nos casos em que tal é aplicável, olhar para a não-monogamia como mais um exercício, mais uma prática, mais um elemento que pode ser incorporado, modificado, negociado, mobilizado para responder a vontades, desejos, ânsias, fetiches, intimidades e todas as outras formas de desejo.
Daniel Cardoso (texto originalmente publicado em ConSenSual, reproduzido com autorização)
Para mais leituras
Coldness and Cruelty – Gilles Deleuze
História da Sexualidade, Vol. 1 – Michel Foucault
Sexual Informatics – Franklin Veaux
The Ethical Slut – Dossie Easton & Janet Hardy
The New Bottoming Book – Dossie Easton & Janet Hardy
The New Topping Book – Dossie Easton & Janet Hardy
Thinking Sex – Gayle Rubin
Towards a General Theory of BDSM and Power – Pepper Mint