Activismo e responsabilidade da comunidade

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Uma denúncia de violência no namoro / física / psicológica / íntima / de género tomou de assalto o movimento LGBTQIA+ e conexos, recentemente, como se pode ver aqui.

Ora, como é infelizmente comum em casos destes, a verdade dos factos está frequentemente circunscrita a quem está na situação, e quem está de fora pode, no máximo, com base em novos testemunhos, tentar entender se o que sabe (se é que sabe alguma coisa) encaixa com o que passou a saber. Dito de outra forma: uma denúncia não é intrinsecamente verdade e ninguém é telepata ou omnisciente.

MAS…

Mas não precisamos de telepatia nem de omnisciência para perceber um certo número de coisas, independentes que são da veracidade ou não dos factos (destes ou de outros quaisquer):

  • Como qualquer pessoa ligada à temática da violência de género / na intimidade vos dirá, uma das principais razões que leva as vítimas a não denunciar as situações de abuso é o medo de que ninguém acredite nelas; esse medo não é, infelizmente, deslocado, já que essa descrença é frequente, especialmente em casos de agressão sexual, e especialmente com menores – não é este o caso aqui, mas estabelece-se uma cultura da desconfiança, em que a pessoa que faz a acusação é mentirosa até prova em contrário, mesmo quando xs agressorxs fazem coisas que são impossíveis de “provar” a posteriori. Se o movimento LGBTQIA+ e as comunidades que o constituem querem fazer um activismo responsável, feminista, não podem comparticipar deste clima de desconfiança face às vítimas. Um espaço de activismo que não seja um safer space não é, por definição, um espaço de activismo. É um espaço de ‘fazer coisas’, é um espaço de ‘vamos lá juntar-nos para trabalhar’, mas não é, nem pode ser, um espaço de activismo, de activismo enquanto exercício responsável de poder político.
  • Apesar de não ser possível pedir às pessoas que simplesmente acreditem, com 100% de certezas, na versão da pessoa A, B ou C, é falso e irresponsável pensar que a acção certa a tomar se limita a dar um encolher de ombros e dizer “não sou a polícia”. A partir do momento em que existe uma queixa, existe a possibilidade de tomar medidas preventivas de mais abuso. Aliás, essa é justamente uma área em que a protecção às vítimas de violência doméstica / na intimidade falha: porque a pessoa faz a denúncia, e depois tem que ir alegremente conviver com a pessoa denunciada. Ora, se a denúncia é feita para a comunidade, dentro da comunidade, então é responsabilidade inescapável da comunidade fazer esse trabalho de prevenção. Prevenção não é julgamento. Prevenção é aplicar a política do mal menor: é um mal menor que alguém injustamente acusadx seja temporariamente afastadx da comunidade e suas actividades, do que alguém que seja efectivamente vítima de violência ter de continuar numa situação de proximidade com quem agride.

Deixem-me repetir: perante uma situação de abuso, a comunidade não pode ficar simplesmente à espera para ver o que acontece, sob pena de perder toda e qualquer parecença de credibilidade. Uma comunidade que luta pela visibilização política de questões que têm que ver com a política de intimidade de que falava o Ken Plummer há vinte anos atrás não pode ficar parada e não tomar uma atitude forte e vigorosa. Um activismo LGBTQIA+ que não é feminista, que não é coerente com os seus próprios princípios, e que usa dois pesos e duas medidas (luta-se contra “eles”, mas não se cuida das situações do “nós”) não passa de uma pilha de hipocrisia que não está a lutar por direitos de minorias, mas por interesses de cliques.

Isto é válido – especialmente válido – inclusive para quando a pessoa a ser acusada está dentro dessa própria comunidade, quando o abuso vem de dentro e não de fora (e não se enganem, o abuso que vem de dentro existe, é real, e infelizmente é muito ignorado por se achar que a violência de género é a violência só entre homens e mulheres).

Isto leva-nos, tristemente, ao segundo acto desta história.

A pessoa visada pelas acusações respondeu publicamente e directamente às mesmas, contactando um magote de gente, ao mesmo tempo que diz, numa outra versão das declarações, não se estar a defender publicamente (!). E fê-lo usando exactamente o mesmo tipo de discurso que agressorxs por esse mundo fora usam quando são confrontadxs com acusações deste tipo: tentam inverter a situação, identificam-se a si mesmxs como vítimas (literalmente: “sou agora também uma vitima [sic]”). Mais que isso, o discurso de resposta da pessoa acusada é manipulativo: “não comentam [sic] uma injustiça, não condenem alguém sem provas, isto é o que vos querem levar a fazer”, e é patologizante da pessoa que levantou a queixa, fazendo um apelo ao ego dxs destinatárixs da mensagem ao mesmo tempo: “não deixem que a vingança e o desejo de destruição de uma vida vos contamine a assertividade”.

Eu não sei, no sentido total da palavra, se as acusações são verdadeiras.

Mas eu não preciso de saber isso para avaliar as respostas dadas pela própria pessoa visada. E estas respostas são as respostas típicas dadas por agressorxs documentadamente culpadxs. Será que esta resposta, em si, constitui prova de que as acusações são reais? Não. De forma nenhuma.

Porém, uma resposta deste género é a antítese dos próprios princípios do movimento LGBTQIA+. Uma pessoa que se considere feminista e activista não tem o direito moral de responder assim, ainda que seja inocente de todas as acusações. Não tem esse direito porque está a recorrer ao mesmo discurso, à mesma retórica que é usada por agressorxs para impedir, bloquear e descredibilizar as vítimas. Não tem esse direito porque estar a patologizar uma (potencial) vítima é aquilo que o patriarcado ensina a fazer, e é aquilo contra o qual é suposto estarmos a lutar. Alguém que pretenda ser coerente no seu activismo e no seu feminismo, ainda que seja injustamente acusadx de algum tipo de violência de género, não pode esconder-se por detrás deste tipo de jogos psicológicos velados.

Portanto, se alguém tivesse dúvidas sobre o que fazer face à acusação, que não tenha dúvidas face a esta nova resposta da própria pessoa. Se alguém diz lutar por igualdade de género, que tome a sua quota parte de responsabilidade em fazer deste mundo um espaço mais seguro para toda a gente, sem pressupostos de pureza adjudicados a ninguém. Quebrem o silêncio, todo o silêncio.

Não deixem que o sentido de comunidade se transforme num espaço seguro para a agressão.

Edit: post citado n' O Clítoris da Razão

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