Vamos falar da ‘Academia’

Cinco anos.

Eu tinha cinco anos quando entrei para a escola primária.

Doze anos (lectivos) depois, entrei na Universidade. Mais três anos lectivos, e tinha uma licenciatura. Mas não só: também falta de dinheiro para prosseguir estudos. Um ano (lectivo e não-lectivo) a trabalhar como bolseiro de investigação e, logo a seguir, Mestrado  [quem diz “logo a seguir”, diz “ao mesmo tempo”]. Dois anos lectivos (porque entretanto estava com estatuto de trabalhador-estudante). Ainda o Mestrado não tinha oficialmente acabado e já eu estava no Doutoramento. Um ano lectivo de aulas, e seriam mais três de investigação e tese, mas que acabaram por virar cerca de quatro.

Tenho 29 anos. Desses, vinte e dois são medidos em “anos lectivos”. É-me mesmo mais fácil pensar em anos lectivos do que em anos legais.

Estou muito longe de ser um investigador “experiente”. Estou muito longe de ser um ‘académico’ “experiente”. Estou muito longe de ser um docente “experiente”. Mas há uma coisa que desde cedo me foi incutida por várias pessoas, mais experientes do que eu, neste mundo da investigação, da Universidade, e que outras experiências minhas de activismo reforçaram: é preciso ouvir os silêncios, os interstícios nos discursos, as pausas que cortam o que se diz.

 

Nesse sentido, há aqui, nesta nossa academia, um silêncio ensurdecedor. Eu consigo literalmente morrer esmagado em livros sobre metodologias de investigação, e muitos deles têm frases, algures (a medo), sobre como a investigação pode ser um processo “solitário”. Sobre como a investigação nos pode levar a focarmo-nos demasiado num detalhe específico, e perdermos a visão de conjunto. E há, claro, infinitas variantes de humor e de humor-transformado-em-investigação. Também bastante falado, especialmente nos últimos anos, é o avanço da neoliberalização da academia, com as métricas quantitativas, os salários abaixo do custo de vida, as condições laborais precárias, o ciclo de bolsa-em-bolsa. Por fim, não é preciso sequer sair de casa para ler/ouvir críticas “à academia” de quem lá não está, ou lá nunca esteve, (ou seja, de quem tem um olhar crítico – algo fundamental – mas que não procurou conhecer em profundidade o objecto da sua crítica – algo perigosíssimo; não é preciso fazer parte da estrutura académica para a criticar, mas qualquer crítica efectiva deve ir ao fundo das questões se as quer mudar).

Mesmo assim, mesmo com isto tudo, continua a haver um silêncio ensurdecedor. E sabem o que é mais engraçado? Esse silêncio é ensurdecedor porque eu não consigo falar com outras pessoas do meu meio profissional sem encontrar experiências semelhantes à minha mas, ao mesmo tempo, com toda esta gente convencida que só elas passaram por isso. Então, quando eu digo que quero falar da ‘Academia’, neste caso, não tem que ver com falar de qualquer um dos pontos acima.

Bem, mentira. Até tem. Aquilo que eu quero dizer está em relação directa com tudo isso – com a precarização, com a neoliberalização, com transformações sociais mais largas. Mas não é esse o ângulo que aqui me move.

Então, vamos falar da ‘Academia’.

Vamos falar de como, em Portugal, mais de 60% dxs professorxs universitárixs sofrem de burnout (dir-se-ia, um termo fancy para falar de depressão).

Vamos falar de como uma conversa em torno da saúde mental na ‘Academia’ já começou “lá fora”, mas nunca chegou cá, apesar de ser um problema transversal, internacional.

Vamos falar das horas de trabalho invisível, administrativo, burocrático, indispensável para fazer as instituições funcionar, mas que não conta como trabalho.

Vamos falar do trabalho emocional envolvido, tão profundamente genderizado e classista.

Vamos falar dos prazos arbitrários para esta-ou-aquela coisa; trinta dias para submeter o papel X, mas ao telefone dizem “ah, não se preocupe se se atrasar mais umas duas ou três semanas”.

Vamos falar da complexidade de negociar relações pessoais e profissionais com orientadorxs, com colegas, com chefes, com gestorxs de projecto, com investigadorxs principais. (Não. Não é coisa de “personalidades”. Não é coisa de “casos pontuais”. Não é isso. São estruturas de poder, lugares que as pessoas ocupam e são feitas ocupar.)

Vamos falar daquela sensação absolutamente devoradora, de nos levantarmos da cama, para nos sentarmos em frente ao computador, e ficarmos felizes se, doze horas depois, conseguimos escrever meia dúzia de páginas naquela tese, ou naquele paper.

Agora vamos falar disso repetido por uma semana. Um mês. Um ano. Dois anos.

Vamos falar do desligamento, da obsessão.

Vamos falar de como esta ou aquela tese, este ou aquele relatório, pode dar cabo da nossa vida social. Ou pode não dar cabo da nossa vida social, mas dar cabo da nossa vontade de ter vida social – o que vai dar no mesmo.

Vamos falar de como esta performance de académicx suga a vida e a energia de quem está à nossa volta, e nos faz esticar as redes de suporte até ao máximo – e às vezes para além do máximo.

Vamos falar sobre o facto de não aparecer, em lado nenhum de uma candidatura a um doutoramento, o item “redes de suporte social e familiar extra-resistentes, com cobertura em kevlar”. Ou de como ter um trabalho e fazer um doutoramento roça a fantasia.

Vamos falar sobre como isto tudo quer, na verdade, dizer que é necessário um privilégio enorme para conseguir de facto terminar esta coisa a que se chama “doutoramento”. Que isso é anti-democrático.

Vamos falar sobre como estas performances de academia funcionam, na prática, como uma espécie de versão retorcida das Provas de Hércules – temos que ser a boa pessoa académica, sobrevivendo à experiência, e não produzindo conhecimento.

Vamos falar de como, para tantas pessoas que conheço (e para mim), esta experiência nos drena, nos esvazia, nos desespera.

Vamos falar da culpa. Vamos por-amor-de-lúcifer falar da culpa. Da culpa cristã, ou coisa que o valha. Porque estamos a comer, mas podíamos estar a escrever. Porque estamos a tomar banho, mas podíamos estar a ler. Porque estamos a ir ver um filme ao cinema, mas podíamos estar a rever. Porque estamos a ler um livro de ficção, mas podíamos estar a analisar mais aqueles dados. Fazer mais aquele gráfico. Codificar mais aquelas respostas.

Vamos falar da defesa pública da tese. Vamos falar da adrenalina, da euforia, do nervosismo. Mas vamos ainda mais falar do vazio. Do nada. De quando o pico de adrenalina passa, e de quando o jantar de comemoração passa, e de quando olhamos à nossa volta e pensamos… “Então… é isto?… Três/Quatro/Cinco anos… é isto? Estas duas horas?”

Vamos falar de como chegamos a demorar meses só a conseguir arrumar as coisas que reunimos para aquela tese / aquele projecto / aquele relatório. Da relação de amor-ódio que temos com aquelas coisas, de as vermos todos os dias e sentirmos uma onda de impotência gigante, como se aqueles livros e aquelas fotocópias pesassem toneladas.

Vamos falar do vazio que se instala depois. Várias pessoas conheço que demoraram um ano ou mais a sentirem-se elas mesmas de novo. Como se alguma coisa se tivesse avariado no processo, e fosse preciso curar. Uma mutilação mental temporária, aos poucos e poucos restabelecida – mas com a cicatriz sempre lá, com o tecido sempre um pouco mais frágil.

Vamos falar sobre como não é suposto falar disto, porque falar disto é falar da Loucura, e falar da Loucura ameaça a performance de racionalidade suprema da academia.

Vamos falar de ter medo de falar destas coisas com a pessoa ‘errada’, porque podemos parecer menos confiáveis, e portanto cair em demérito.

Vamos falar do trabalho que dá manter uma performance de execução, de realização pessoal e profissional de topo, num ritmo frenético, e onde (não sem alguma ironia, dada a conotação da expressão “trabalho intelectual”) a melhor metáfora parece ser a do Chaplin em Tempos Modernos.

Vamos falar da absurda distinção entre “trabalho físico” e “trabalho intelectual”. Da última vez que verifiquei, ainda tinha o cérebro dentro do corpo, e ainda dependia do resto do corpo para o fazer trabalhar.

Vamos falar, por fim, destes silêncios. De como eles se promovem, não por uma qualquer conspiração vinda de cima, desta ou daquela estrutura e instituição, mas das práticas quotidianas, interpessoais, das disciplinas que interiorizamos junto com as citações fáceis desta ou daquela sumidade.

Sim. Claro. #NotAllAcademics

Mas 60% é muito. É demais. Não é por acaso. Não é situacional. É estrutural.

Vamos falar?